O seminário inglês - a esgrima intelectual e seu propósito
Imagine uma luta de faixas-preta de Karatê.
Os lutadores se conhecem e, mesmo não sendo exatamente aquilo que a gente costuma chamar de "amigos", se respeitam.
O programa inclui uma hora de apresentação do paper. Ao redor, estão estudantes de vários níveis (ou faixas) e também vários faixa preta (professores).
Um lutador do mesmo ranking assume o posto de mestre de cerimônias. Ele anuncia os grandiosos feitos do guerreiro, mas a pompa aristocrática inclui pitadas de sarcasmo inteligente quase invisíveis aos não iniciados como eu.
A apresentação inicial é uma espécie de katá em que o lutador exibe sua perícia intelectual aplicada ao trabalho científico. Ele mostra o que fez, por que fez, como fez e as conclusões a que chegou. Terminada essa etapa, o apresentador costuma fazer a primeira pergunta e depois passar a palavra.
Daí o tempo fecha e é pancadaria (intelectual) para surpreender e voltar a surpreender quem, como eu, se acostumou com a cortesia da academia brasileira.
A intensidade desses espetáculos de esgrima acadadêmica dão a impressão que o limiar do aceitável no convívio civilizado será ultrapassado a qualquer instante e se transformar em agressão física- mas em um ano, eu nunca vi isso acontecer.
A tradição do seminário inglês
Alfred Gell foi uma das grandes promessas da atual geração da antropologia inglesa - junto com Tim Ingold -, mas morreu vítima de câncer precocemente. Porque me encantei com o texto dele sobre O Encanto da Tecnologia (e a Tecnologia do Encanto), li o texto introdutório dessa coletânea póstuma e lá ele fala sobre a tradição do seminário na Inglaterra.
Diferente da academia americana, que parece fazer o debate de forma mais esterelizada no espaço abstrato da publicação, os ingleses produzem suas pesquisas pensando que seu destino será apresentá-las (aos leões) nos seminários. A publicação em revistas acadêmicas, diz Gell, é apenas um subproduto desse processo.
Aprendendo a se defender
Apesar de me assustar com a intensidade dos embates, também admiro o fato de existir ali uma espécie de preparação para a guerra, bem no estilo do que acontece nas academias de luta. O lutador é honrado não por ser poupado, mas por ter que sobreviver ao ser testado.
O espaço do confronto é vivo - e carregado de emoções, apesar da quase imobilidade dos participantes. Existe um aqui e um agora nesses eventos que aparentemente fazem com que a disputa se torne mais real.
(O seminário é encarado e apresentado aos alunos como um atividade tão ou mais importante que as aulas - apesar de não haver avaliação relacionada a essa atividade. Você tem que ir porque tem e isso é respeitado - e eu diria, apreciado no sentido físico da palavra - pelos professores.)
Dentro do ringue cerimonial, os oponentes parecem ter a obrigação honrosa de dar o seu melhor atacando sem piedade cada brecha do paper apresentado. E vejo como esses ataques, mesmo os maliciosos, servem para a aprimoração da pesquisa, se não por outro motivo, pelo menos para que o autor reforce a blindagem.
Um trabalho que sobrevive a esse tipo de crítica direta, aberta, impiedosa, chega ao grande público com uma qualidade superior. É como se ele tivesse passado por uma espécie de ISO 9000.
Touché
Estou contando isso tudo porque outro dia encontrei no pub, - esse espaço da democratização do convívio na Inglaterra - por coincidencia, bebendo juntos, dois protagonistas dos principais confrontos em seminário deste ano letivo.
Eles são antropologos conhecidos e reconhecidos, com produção respeitada e relevante em suas áreas. E eu jurava que havia entre eles uma profunda inimizade, tendo em vista a intensidade dos ataques mútuos nas vezes em que eles apresentaram seus papers. Mas lá estavam, bebendo e conversando no pub.
Porque eu já tinha bebido e estava ficando corajoso, tomei a palavra e disse exatamente isso para eles, e que suspeitava que os confrontos fossem também uma espécie de representação.
Eles riram, em parte concordando, mas um deles fez o seguinte comentário:
- Melhor assim do que viver no ambiente hipócrita em que há o respeito formal entre os professores, ninguém se critica publicamente (mas se amaldiçoam nos bastidores) e cada um tem seus alunos-seguidores para se sentirem endeusados e intocáveis.
Pois é, meus amigos: touché?
Salvem o seminário
Recebi da Alesscar este texto curto, publicado no site da Times Higher Education, falando da tradição do seminário inglês e do perigo dela se perder.
É importante o que ela fala sobre o esforço de prestar atenção.
Nem todo seminário é bom e emocionante.
Nem só professores faixa-preta apresentam seus papers. Vêm cadidatos a doutores, pesquisadores, da própria instituição e de fora. Alguns falam baixo, alguns falam complicado, etc.
Esse é um preço do seminário: prestar atenção sempre, independente de quem está apresentando. É um esforço conjunto de quem assiste e de quem fala. E parece que mesmo aqui, esse esforço está se tornando desinteressante.